Vieira, Miguel Said. “Economia colaborativa, entre comum e mercadoria“. XII CODAIP (Congresso de Direito de Autor e Interesse Público). Curitiba, 6/11/2018.
Apresentação na mesa de estudos de caso sobre “direitos autorais e economia colaborativa”, no XII CODAIP, a convite. Colo abaixo o texto base da minha fala.
Economia colaborativa, entre comum e mercadoria
Vou tratar aqui de algumas maneiras pelas quais essas possibilidades abertas pela colaboração podem ser cooptadas, hoje, de forma contrária aos interesses da maioria dos pessoas. O que eu vou falar aqui baseia-se na pesquisa do meu doutorado, e nos trabalhos que eu fiz depois (sobre REA, principalmente).
Bens intelectuais como mercadorias
Quem já ouviu essa expressão: “a propriedade intelectual é o petróleo do sec. XXI”? Mark Getty, da família Getty (enriqueceu com petróleo) e fundador da Getty Images (2000). Não por acaso, também foi o título de uma conferência de 2007, que discutiu desequilíbrios e injustiças associados à PI na contemporaneidade. Desde meados do século, principalmente com TRIPS e as consolidações nas indústrias do entretenimento e da informação, os bens culturais se transformaram cada vez mais em mercadorias — no sentido de Karl Polanyi: algo que em primeiro lugar é produzido com o intuito de ser lucrativo (satisfazer uma necessidade passa a ser um objetivo apenas indireto: o principal é garantir lucratividade alta).
Produção colaborativa
Esse período também foi marcado por outras transformações. Uma delas foi a grande mudança social trazida pela revolução das TICs. Essa mudança favoreceu muito a colaboração em torno de obras intelectuais; e abriu espaço para formas de colaboração amplas, descentralizadas, nas quais a negociação individual de contratos e licenças de DA seriam um grande empecilho, ou sequer fariam sentido para quem estava envolvido. Com efeito, as pessoas contribuíam para a Wikipédia e o software livre por diversas razões: hobby, reputação pessoal, o desejo de que aquele projeto avançasse; mas ninguém contribuía pensando em vender direitos de uso sobre sua contribuição para um artigo ou software.
Commons-based peer production
Projetos como esse realizaram o que o professor estadunidense Yochai Benkler chamou de commons-based peer production, ou “produção por pares baseada em bens comuns”. Tem dois elementos aí: a “produção por pares” refere-se a essa organização mais descentralizada, em que as pessoas trabalham frequentemente de forma voluntária, em tarefas relativamente pequenas e modulares, e que podem ser integradas em um projeto de fôlego — como é o caso da Wikipédia, e de muitos projetos de software livre (só pra dar um exemplo, o sistema operacional Debian reúne mais de 300 milhões de linhas de código; numa estimativa de 2009, seu desenvolvimento teria custado 6,1 bilhões de euros se fosse feito por uma empresa). O segundo elemento é que essa produção é baseada em “bens comuns”: coisas — como o código de um projeto de software livre, ou os verbetes da Wikipédia — que uma comunidade usa em conjunto, de forma não exclusiva. A economia mainstream, que via com bons olhos aquele movimento de mercantilização que eu mencionei, também considerava que a colaboração em torno de bens comuns era inviável por princípio (esse é o argumento da “tragédia dos comuns”, de Garrett Hardin); mas desde os anos 1980, uma cientista política chamada Elinor Ostrom vinha fazendo estudos importantes sobre bens comuns, e contestando empiricamente essa ideai: ela mostrou havia práticas de bens comuns que se sustentavam há séculos, em áreas como manejo florestal, pesca e irrigação comunitárias. O que pesquisadores como Benkler observaram é que, agora, essa dinâmica surgia com um vigor renovado na área dos bens intelectuais: agora, era mais fácil colaborar para construir bens “do zero”, e a possibilidade da colaboração dependia menos da proximidade geográfica (tinha gente contribuindo para software livre em todos os continentes).
Surgia, assim, uma possibilidade de limitar fortemente a mercantilização dos bens intelectuais: um estudante de Angola que não tinha dinheiro para comprar uma enciclopédia importada podia usar a Wikipédia; uma escola na Bolívia, em vez de pagar pelo Windows, podia instalar um sistema operacional gratuito em seus computadores, e contribuir para que esse software fosse traduzido para línguas originárias como Quechua e Aymara. Em outras palavras, o acesso não ficava restrito só a quem podia pagar pela mercadoria; e como o software não era mantido por meio da venda, as contribuições para os projetos eram direcionadas pelas necessidades das pessoas.
Colaboração e captura
Embora essa possibilidade permaneça existindo, é preciso reconhecer que nem tudo são flores. Os setores mais avançados do capitalismo perceberam essas transformações, e adaptaram seus modelos de negócio para acompanhá-las. Em alguns casos, isso não impediu os avanços positivos que eu mencionei; em outros, trouxe problemas novos.
Tomemos o exemplo do software livre. Já faz algum tempo que a grande maioria do desenvolvimento do kernel Linux (um componente fundamental dos sistemas operacionais livres) não é feita por hobbyistas ou no tempo livre, mas por programadores contratados para fazer isso por grandes empresas de TI; essas empresas custeiam indiretamente esse desenvolvimento, e não estão fazendo isso por altruísmo, mas porque atrelaram suas estratégias comerciais a esses softwares (em parte porque elas sabem que esse desenvolvimento colaborativo tende a ser mais dinâmico e eficiente). Isso significa, porém, que quando for necessário fazer uma escolha técnica em que entrem em conflito os interesses daquela escola na Bolívia, e os de empresas como IBM e Sun (que lucram com serviços baseados em software livre), são essas empresas que tendem a ser privilegiadas. Esse não é um exemplo totalmente abstrato: um dos casos que explorei no meu doutorado foi o do conflito entre um programador hobbyista (chamado Con Kolivas), que estava preocupado em melhorar o desempenho do Linux para tarefas de usuários finais (como escutar música num PC); e de outro lado, uma maioria de programadores contratados por essas grandes empresas, e que estavam muito mais preocupados em melhorar o desempenho do Linux para tarefas de usuários corporativos (como ganhar 20 milissegundos de performance num servidor de grande porte de um banco, digamos). Aí você tem uma situação em que há tanto ganhos como perdas, na perspectiva da mercantilização: o software em si realmente foi desmercantilizado (a escola continua tendo acesso gratuito a ele); mas o desenvolvimento dele tende a ser direcionado para favorecer a venda de uma outra mercadoria (que são os serviços prestados por essas grandes empresas). É como se a mercantilização tivesse se deslocado.
Ainda no software livre, um exemplo similar (mas em que o resultado é pior) é o do sistema operacional Android. Ele tem uma camada básica que é software livre; a Google gerencia o projeto, e convida outras empresas a contribuírem (o que permite aquele dinamismo que eu já mencionei). Só que, sozinha, essa camada básica é praticamente inútil: a maioria dos celulares nem funcionaria só com ela (e seria bem difícil instalá-la). Na prática, ela serve mais como “veículo” para uma grande quantidade de softwares proprietários da Google: aplicativos como Chrome, Maps etc.; e cada vez mais, as próprias interfaces internas que permitem aos demais aplicativos usar os recursos do celular, como geolocalização, sensores etc.
Consumismo e vigilância
E aqui a gente chega num caso ainda mais sério e relevante, com o qual eu vou me aproximando do final dessa fala. Vocês lembram daquela frase, “a propriedade intelectual é o petróleo do século XXI”? Pois bem, esses setores avançados do capitalismo já perceberam que isso não é mais verdade. Inclusive, se você pesquisar “petróleo do século XXI”, verá qual é a nova menina dos olhos: dados. Olhando pelos resultados no Google, a partir de 2015 a frase “dados são o petróleo do século XXI” começa a pipocar na web, e hoje ela já aparece é 6x mais que “propriedade intelectual é o petróleo século do século XXI”. E o que isso tem a ver com o Android e a economia colaborativa? Ora, pro Google, o celular com Android é uma ferramenta inestimável pra coletar o grande ativo dessa empresa: nossos dados pessoais. Uma vez “refinados” e transformados em perfis, esses dados permitem à Google “produzir” a principal mercadoria deles, que é a nossa atenção; quem compra essa mercadoria são as empresas, que procuram audiências específicas que talvez queiram comprar seus produtos.
Com pequenas diferenças, esse é também o modelo de outros atores do setor de ponta do capitalismo, como o Facebook. Lembrem-se que não é apenas software livre ou verbetes da Wikipédia que nós estamos produzindo colaborativamente: todo o conteúdo que está no Facebook foi produzido por nós, e é selecionado e curado com base nas nossas interações (likes, cliques, comentários) e dados pessoais. E toda aquela plataforma é minuciosamente calibrada para maximizar, de um lado, a nossa contribuição pra ela (em forma de conteúdos ou dados), e, de outro lado, a nossa exposição a anúncios de mercadorias que possam nos interessar.
Concluo apontando duas consequências muito importantes desse cenário. Em primeiro lugar, essa exposição cada vez maior a anúncios cirurgicamente selecionados, que atingem desejos que a gente mal sabia que tinha, impulsiona muito o consumismo; não há planeta suficiente pra tanto consumo, nem psicanalista suficiente pra tanto desejo frustrado.
E em segundo lugar, essa gigantesca quantidade de dados pessoais nossos pode ser abusada tanto por empresas, como por governos mal intencionados; nós já vimos isso acontecer recentemente (talvez vocês se lembrem de um sujeito chamado Edward Snowden). E um triste lembrete para nós brasileiros, que saímos de uma ditadura há pouco mais de 30 anos: com governantes que tenham tendências autoritárias, o perigo desse abuso só aumenta.
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