Entrevista sobre bens comuns para o site Em Rede

(Republicado do site Em Rede.)
Entrevista por: Bia Martins

Miguel Said Vieira, pesquisador e professor da Universidade Federal do ABC
Miguel Said Vieira, pesquisador e professor da Universidade Federal do ABC

 

O debate sobre a construção do comum e os riscos de sua apropriação pelo capital vem ganhando destaque nos dias atuais. Por um lado, as redes de comunicação facilitaram a disseminação da produção colaborativa em iniciativas do porte da Wikipédia e do sistema operacional Linux. Por outro, novas formas de mercantilização e cercamento têm sido criadas, por vezes de forma um tanto sutil. Nesta entrevista, Miguel Said Vieira, professor da Universidade Federal do ABC, aborda as características e a complexidade da construção e da preservação do bem comum.

– Para começar nossa conversa: o que é o comum? Em que ele se diferencia da noção de público?

Numa definição simplificada, o comum são coisas compartilhadas por grupos sociais. “Comuns” e “bens comuns” são expressões que se referem aproximadamente à mesma coisa (mas com abordagens e ênfases diferentes — o diabo às vezes mora nos detalhes).

A diferença entre a noção de comum e a de propriedade privada é bem evidente, já que esta última pressupõe controle exclusivo (e em geral, individual). A diferença entre a noção de comum e a de público, porém, é um pouco mais sutil, e com frequência se faz confusão entre elas. A coisa pública é aquela que pertence por direito a toda uma comunidade (os cidadãos de uma nação), mas é gerida por uma instância representativa (o Estado); a relação entre essa comunidade e a coisa “compartilhada” é, assim, muito mais indireta que no caso do comum, em parte pelo fato de que o Estado frequentemente acaba por favorecer os grupos sociais mais poderosos.

– Por que, na sua avaliação, o debate sobre o comum vem ganhando relevância hoje em dia? As ameaças são maiores atualmente ou, ao contrário, há mais condições para o seu florescimento por conta da comunicação em rede?

Paradoxalmente, acredito que ambas as razões têm aumentado a relevância desse debate. Por um lado, a tendência de avanço da privatização e dos mercados sobre todas as esferas da vida não dá sinais de perder força significativamente, mesmo depois da crise de 2008; apontar e problematizar essa tendência é fundamental para defender os bens comuns existentes. O avanço da digitalização e da comunicação em redes, por outro lado, tem um caráter ambíguo: pode servir a fortalecer essa tendência de mercantilização, mas gera fissuras (por exemplo, no cenário da mídia de massas) e abre possibilidades para quem deseja nadar contra a corrente, experimentando novos formatos de mobilização e associação; onde há poder, há resistência, como dizia Foucault. As experiências positivas de novos bens comuns quase invariavelmente beneficiam-se dessas possibilidades; é preciso estar atento aos riscos que elas implicam (afinal, as tecnologias nunca são neutras), mas isso não deve levar ao imobilismo.

– Em sua pesquisa de doutorado você estudou as formas de mercantilização do comum, o que à primeira vista parece contraditório. Como isso acontece? Pode dar algum exemplo?

Assim como no mercado financeiro, em que os ganhos se dão por mecanismos cada vez mais complexos e distanciados da “economia real”, a mercantilização também não é um processo simples, unidimensional: não é apenas colocar uma etiqueta de preço em um objeto que antes não era vendido. É importante estar atento a essa complexidade nos novos bens comuns, ligados aos bens culturais e de informação. Tomemos o exemplo do software livre: o software em si deixa de ser uma mercadoria (ele pode ser compartilhado livremente), mas, em diversos casos, os serviços relacionados a esse software (instalação, suporte, customização) são vendidos como mercadorias; às vezes, produz-se também uma versão “premium” (e proprietária) desse software, que é vendida como mercadoria; ou investe-se no desenvolvimento de um desses softwares para impulsionar a venda de um hardware específico etc.

Em alguns casos, o saldo é positivo, com o comum avançando mais que a mercantilização: os serviços ligados a software, por exemplo, quase sempre foram vendidos como mercadoria — não há um retrocesso, nesse sentido. Às vezes, porém, o saldo pode ser ambíguo, ou mesmo negativo: como quando uma empresa direciona um projeto de software livre de forma a favorecer sua estratégia comercial, em detrimento dos interesses da comunidade mais ampla que contribui para ou poderia se beneficiar do projeto. (No meu doutorado, analisei brevemente um episódio do desenvolvimento do kernel Linux — a controvérsia dos “patches ck” — que exemplifica essa situação.)

Na área de acesso aberto a periódicos científicos também ocorre algo similar, particularmente no modelo baseado em APCs, as taxas para publicação (em que quem paga não é o público leitor, mas os autores e instituições de pesquisa). Em alguns casos, esse modelo de publicações é estruturado de forma a atender os interesses das mesmas grandes editoras que já faziam da publicação científica um oligopólio com taxas de lucro obscenas.

O exemplo mais extremo de mercantilização que analisei foi a publicidade online comportamental (que envolve o uso dos dados de um usuário para selecionar — e precificar — os anúncios exibidos a ele), que é usada para custear o sustento de alguns comuns. Nesse caso, a atenção da própria comunidade ligada ao bem comum vira a mercadoria, vendida a anunciantes; e o mecanismo só é viável se a comunidade consumir mais mercadorias (do contrário, sua audiência não será uma mercadoria rentável para anunciantes). Essa mercantilização é tão profunda que deixa a dúvida se ainda é possível falar de comum nesses casos; plataformas como Facebook e Google — usuárias intensivas desse tipo de publicidade — dão-nos a ilusão de uma praça, quando na verdade estão muito mais para um shopping: toda a socialização ali é silenciosamente apropriada por essas empresas (e eventualmente controlada para favorecer seus interesses).

– Na sua tese você dialoga de forma crítica com a economista Elinor Ostrom, autora do livro Governing the Commons, que é uma referência nos estudos sobre o comum. Qual seria, de forma resumida, sua ressalva a essa obra?

A partir do final da década de 1960, consolidou-se uma opinião geral de que os comuns não eram viáveis; o famoso artigo “The Tragedy of the Commons”, do biólogo Garrett Hardin, teve papel central nisso: ele assume que os indivíduos comportam-se como o homo economicus (ou seja, que agimos sempre buscando nosso interesse imediato, com base num cálculo racional extremamente individualista), e a partir daí demonstra que todo bem comum seria sempre destruído pela superexploração.

O trabalho da Ostrom demonstrou magistralmente que essa visão de Hardin é parcial (ignora, por exemplo, a possibilidade de que um grupo construa normas sociais eficazes), e não bate com a realidade: é só observar os muitos comuns existentes para ver que eles podem sim ser viáveis; e o trabalho dela continua contribuindo para elucidar as condições que afetam a viabilidade efetiva de um comum. O problema da abordagem de Ostrom, porém, é que ela faz tudo isso sem romper de forma mais significativa com a visão individualista que embasa o pensamento de Hardin: ela explica a cooperação num bem comum pelo prisma do próprio indivíduo, sofisticando e agregando novas variáveis ao mesmo cálculo racional suposto por Hardin. Isso faz com que a teoria às vezes não seja capaz de equacionar adequadamente questões sociais, mais amplas — como os problemas acarretados pela mercantilização.

– O movimento Ciência Aberta preconiza a diminuição ou mesmo a extinção das barreiras da propriedade intelectual na pesquisa científica, na defesa de que a Ciência deva ser patrimônio comum da humanidade. Por outro lado, há os que apontam a necessidade de estabelecer restrições tendo em vista a garantia do bem público, como faz a Fiocruz ao patentear os produtos de suas pesquisas. Como você vê esse debate?

Acho um debate extremamente interessante. Uma parcela importante dos movimentos por conhecimento livre certamente discordaria de forma radical da estratégia da Fiocruz; trata-se do grupo que se opõe às restrições a usos comerciais do conhecimento (como as restrições impostas pelas licenças CC-NC). Os mais moderados desse grupo apresentam razões práticas relevantes para isso: 1) a dificuldade de determinar precisamente o que é um uso comercial; e 2) o fato de que a viralidade das licenças copyleft (isto é, com cláusulas tipo CC-SA) teria o potencial de converter progressivamente o mundo do conteúdo proprietário (onde predominam os usos comerciais) em um mundo aberto. Ainda assim, parece-me que a posição desse grupo sofre de uma certa miopia, similar à que apontei na visão de Ostrom: não leva suficientemente em conta que a mercantilização tem efeitos nefastos, e que ela já tem se metamorfoseado de forma a coexistir com o comum (como mencionei acima).

Não estou dizendo, com isso, que concordo a priori com a estratégia da Fiocruz (pelo contrário); mas que em casos como esse devemos considerar com cuidado as consequências sociais e os interesses favorecidos por cada alternativa disponível. Por exemplo: até que ponto uma entidade pública (como a Fiocruz) deve favorecer entidades privadas — e, particularmente, entidades privadas que não contribuem para os comuns? A partir de que ponto esse favorecimento deixa de ser bom uso do dinheiro público, e passa a perpetuar e ampliar desigualdades? Por outro lado, como garantir que os grupos menos privilegiados possam fazer uso desse conhecimento — uso que a patente impede, a princípio? Seria possível uma solução intermediária, exigindo contrapartidas de certos tipos de usuários, mas liberando esse conhecimento para os demais? Essas contrapartidas podem ser uma maneira de financiar a criação de um comum?

Em suma, ao pensar sobre conhecimento livre, devemos também nos perguntar: livre… para quê? Devemos incluir aí a liberdade para uma empresa oligopolista explorar os esforços solidários dos demais, ampliando a desigualdade social sem contribuir para o comum? Será que conceber essa liberdade de forma absoluta, para tudo e todos, não tenderia a cristalizar as desigualdades já existentes na sociedade? E será que uma cláusula copyleft, por si só, sempre garantirá que outros grupos terão condições similares de se beneficiar desse conhecimento? (Isso afeta particularmente um setor como o farmacêutico, em que são muito poucos os atores que possuem os requisitos mínimos — de capacitação, tecnologia e capital — para fazer uso desse conhecimento.) Não é fácil conciliar essas preocupações com os objetivos mais imediatos dos movimentos de conhecimento livre, mas penso que, para que eles sejam efetivamente transformadores, é importante fazer essa reflexão; o debate sobre as licenças de reciprocidade (que eu sei que interessa a nós dois) também é muito relevante nesse sentido.

– Alguns autores têm enfatizado a ideia do comum como algo em construção ou uma prática social. Nesse sentido, como resistir à apropriação privada do bem comum?

Por um lado, denunciando e lutando contra essas apropriações; por outro lado, construindo e apoiando os próprios comuns: projetos de software livre, movimentos de ocupações urbanas, povos tradicionais (que mantêm muitas práticas de bens comuns na América Latina), comunidades de compartilhamento peer-to-peer etc.

A perspectiva que você citou costuma ser resumida na frase “there is no commons without commoning” (não há comum sem fazer comum), de Peter Linebaugh; uma das (várias) contribuições dessa abordagem é enfatizar que, tanto na resistência como na construção de alternativas, a atuação estritamente individual tem seus limites: para transformar efetivamente nossa realidade, temos que construir formas de ação conjunta (…comum!), estendendo nossa solidariedade aos mais oprimidos.


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